A desumanização do humano, por Nara Rúbia Ribeiro
Acordo sempre bem cedo e, por força da necessidade de me ver integrada
ao mundo em que vivo, ligo a tv e abro o notebook, enquanto a água ferve para o
café da manhã:
“Milhares de crianças na Nigéria foram mortas, raptadas ou expostas a
violência inimaginável (nota da Unicef).” Mudo de site: “Mulher tem os
olhos perfurados pelo marido durante discussão do casal”. Outro site notícia:
“Adolescente é apedrejado por populares após ser pego ao tentar furtar um
aparelho celular”. Abro o Facebook: “Carta aberta de Mia Couto ao
Presidente da África do Sul sobre o genocídio de moçambicanos naquele país”. Na
tv: “Naufrágio no mediterrâneo pode ter causado centenas de mortes de
imigrantes”.
Ainda sem conseguir mensurar a quantidade de dor a que fui exposta logo
no início do dia, resolvo, já com olhos embaçados e voz embargada, comprar o
meu pão. A caminho da padaria, deparo-me com uma senhora que dorme na calçada
abraçada a uma criança, ambas cobertas por um imundo cobertor. Como se não
bastasse a cena em si, um senhor bem vestido e seguramente muito apressado
quase nelas tropeça e reverbera: “Desgraça! Trabalhar não quer, não… Fica aí
entulhando a rua”.
Perco o chão e me sinto petrificada ao observar, na gravidade de tudo o
que vi nos noticiários e agora bem diante de mim, naquela cena, o paradoxo de
viver, na era áurea dos direitos, a flagrante desumanização do humano.
Tratados e Acordos Internacionais estabelecem que dados direitos são
preciosidades inalienáveis de cada um dos humanos. O Direito Constitucional de
cada Estado traz ao seu ordenamento interno garantias a esses direitos que são
diretamente ligados aos ditos “direitos naturais”, compreendendo o direito à
vida, à integridade física, ao respeito à dignidade de cada ser humano.
Mas a sociedade, que bem sabe evocar as leis quando é colocado em xeque
algum de seus direitos patrimoniais, vale-se de um mecanismo muito sutil para
mentalmente subverter os valores que ela própria instituiu. Ela hierarquiza os
seres humanos valendo-se de indicadores diversos, mas preponderantemente
econômicos, de modo que quanto mais alto alguém esteja na dita “pirâmide
social”, mais humano ele seja e o quanto mais baixo estiver, menos humano ele
é. Ocorre, então, a desumanização do humano.
E, se não é humano, é considerado indigno de ser protegido pelos
direitos inerentes à nossa espécie, momento em que tantos enxergam como
legítimos atos de absoluta barbárie.
Esse método já é antigo. Europeus, em pleno “século das luzes”,
equipararam indígenas americanos a animais, dizimando-os. Equipararam também a
animais ou a “coisas” os africanos, escravizando-os.
Na tentativa de legitimar toda a sorte de maus tratos à mulher,
religiosos, na Idade Média, travaram severas discussões: a mulher teria ou não
teria uma alma?
Para algumas religiões, aqueles que professam a sua fé são filhos, os
demais, meras criaturas de Deus. Ora, se não são filhos de Deus, se não possuem
filiação e proteção divinas, caso recusem a fé que tanto estimam são
hostilizados e havidos como inferiores. Por vezes a inferioridade é tamanha que
as suas existências ofendem os “santos corações religiosos”, que reagem com
torturas e homicídios. Quem não leu sobre as cruzadas, as inquisições e tantas
outras de mortes por motivação religiosa no curso da História e na atualidade?
É na desumanização do homem que se apoia o genocídio, tanto no passado
quanto nos dias de hoje. Na visão fanática que deu ao nazismo contornos
similares ao fanatismo religioso, os judeus nada mais eram que porcos a serem
sangrados para a higienização do planeta; e assim o fizeram com esmerado
sadismo, legando à humanidade a vergonha do holocausto.
É fácil perceber as incongruências históricas no tocante ao desrespeito
aos Direitos Humanos e, não raro, envergonhamo-nos de nossos antepassados.
Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir
enxergar as mazelas do seu próprio tempo.
Contudo, devemos estar
atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu
próprio tempo.
Hoje, a passividade com que vemos a segregação dos negros, a
discriminação dos pobres, o desprezo aos imigrantes, a demonização do infrator,
a subjugação da mulher, a estigmatização de homossexuais, o desrespeito às
comunidades indígenas e a perseguição de religiões e cultos diversos (no
Brasil, especialmente às religiões de origem africana) condena-nos a
todos.
Aquele que se conforma com a injustiça é tão injusto quanto aquele que a
pratica. Somos coautores da miséria moral de um tempo onde o sangue francês
vale lágrimas e comoção de todo o mundo (e vale mesmo), enquanto o sangue de
centenas de africanos se derrama anônimo, embora o derramamento se dê pela
mesma motivação religiosa e sob o mesmo discurso de desumanização.
Ontem, ao ler os comentários acerca da xenofobia e do genocídio que
vitimam moçambicanos na África do Sul, uma adolescente moçambicana
comentou: “o nosso único pecado é sermos miseráveis”. Sim, ela
entendeu o mecanismo: desumanizamos o pobre culpando-o por sua pobreza. Na
visão doentia de muitos, ele é um estorvo. Um nada. “É um entulho na calçada do
mundo”, diria o moço apressado que quase tropeçou na senhora e na
criança que dormiam na rua.
Sim, é nesses pobres a quem desumanizamos que tropeça a hipocrisia de
uma pseudocivilização de Direitos. É neles que tropeça a religiosidade ociosa e
o fanatismo sádico. Neles tropeça a nossa política não inclusiva e o nosso
capitalismo: sempre cego a quem não lhe mostrar os cifrões.
É junto a esses pobres mendigos a quem roubamos o direito de ser gente
que se entulham também o humano que somos e a consciência que renegamos.
Fotografia de
Alessandro Bergamini
Nara Rúbia
Ribeiro: colunista CONTI outra

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