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domingo, 6 de setembro de 2015

Um inadiável acerto de contas com a Mãe Terra

06/09/2015
A encíclica do Papa Francisco sobre “O cuidado da Casa Comum”(Laudato Si) está sendo vista como a encíclia “verde”semelhantemente como quando dizemos economia “verde”. Eis aqui um grande equívoco. Ela náo quer ser apenas “verde” mas propõe a ecologia “integral”.
Na verdade, o Papa deu um salto teórico da maior relevância ao ir além do ambientalismo verde e pensar a ecologia numa perspectiva holística que inclui o ambiental, o social, o político, o educaciional, o cotidiano e o espiritual. Ele se coloca no coração do novo paradigma segundo o qual cada ser possui valor intrínsceo mas está sempre em relação com tudo, formando uma imensa rede como aliás o diz exemplarmente a Carta da Terra.
Em outras palavras, trata-se de superar o paradigma da modernidade. Este coloca o ser humano fora da natureza e acima dela como “seu mestre e dono (Descartes), imaginando que ela não possui nenhum outro sentido senão quando posta a serviço do ser humano que pode explorá-la a seu bel-prazer. Esse paradigma subjaz à tecnociência que tantos benefícios nos trouxe mas que simultaneamente gestou a atual crise ecológica pela sistemática pilhagem de seus bens naturais.
E o fez com qual voracidade que ultrapassou os principais limites intransponíveis (a Sobrecarga da Terra). Uma vez transpostos, colocam em risco as bases físico-química-energéticas que sutentam a vida (os climas, a escassez de água, os solos, a erosão da biodiversidade entre outros). É hora de se fazer um ajuste de contas com a Mãe Terra: ou redifinimos uma nova relação mais cooperativa para com ela e assim garantimos a nossa sobrevivência ou podemos conhecer um colapso planetário.
O Papa inteligentemente se deu conta desta possibilidade. Daí que sua encíclica se dirige a toda a humanidade e não apenas aos cristãos. Tem como propósito fundamental cobrar um novo estilo de vida e uma verdadeira “conversão ecológica”. Esta implica uma novo modo de produção e de consumo, respeitando os ritmos e os limites da natureza também em consideração das futuras gerações às quais igualmente pertence a Terra. Isso está implícito no novo paradigma ecológico.
Como temos a ver com um problema global que afeta indistintamente a todos, todos são convocados a dar a sua contribuição: cada país, cada instituição, cada saber, cada pessoa e, no caso, cada religião como o cristianismo.
Em razão desta urgência, o Papa juntamente com a Igreja Ortodoxa instituíu todo o dia 1º de setembro de cada ano como o “Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação”. Assevera claramente que “devemos buscar no nosso rico patrimônio espiritual as motivações que alimentam a paixão pelo cuidado da criação”(Carta do Papa Francisco de 6/08/2015). Observe-se a expressâo “paixão pelo cuidado da criação”. Não se trata de uma reflexão ou algum empenho meramente racional mas de algo mais radical, “uma paixão”. Invoca-se aqui a razão sensível e emocional. É ela e não simplesmente a razão que nos fará tomar decisões, nos impulsionará a agir com paixão e de modo inovador consoante a urgência da atual crise ecológica mundial.
O Papa tem consciência de que o cristianismo (e a Igreja) não está isento de culpa por termos chegado a esta situação dramática. Durante séculos pregou-se um Deus sem o mundo, o que propiciou o surgimento de um mundo sem Deus. Não entrava em nenhuma catequese o mandato divino, claramente assinalado no segundo capítulo do Genesis, de “cultivar e cuidar o jardim do Éden” (2,15). Pelo contrário, o conhecido historiador norte-americano Lynn White Jr ainda em 1967 (The historical Roots of our Ecologic Crisis, em Science 155) acusou o judeo-cristianismo com sua doutrina do domínio do ser humano sobre a criação como o fator principal da crise ecológica. Exagerou como a crítica o tem mostrado. Mas de todos os modos, suscitou a questão do estreito vínculo entre a interpretação comum sobre o senhorio do ser humano sobre todas as coisas e a devastação da Terra, o que reforçou o projeto de dominação dos modernos sobre a natureza.
O Papa opera em sua encíclica (nn. 115-121) uma vigorosa crítica ao antropocentrismo dessa interpretação. Entretanto, na carta de instauração do dia de oração com humildade suplica a Deus “misericórdia pelos pecados cometidos contra o mundo em que vivemos”. Volta a referir-se a São Francisco com seu amor cósmico e respeito pela criação, o veradeiro antecipador daquilo que devemos viver nos dias atuais.
Cabe concluir com as palavras do grande historiador Arnold Toynbee:”Para manter a biosfera habitável por mais dois mil anos, nós e nossos descendentes temos que esquecer o exemplo de Pedro Bernardone, (pai de São Francisco), grande empresário de tecidos no século XIII e seu bem-estar material e começar a seguir o modelo de Francisco, seu filho, o maior entre todos os homens que viveram no Ocidente…Ele é o único ocidental que pode salvar a Terra” (em ABC, Madrid 19/12/1972, p. 10).
Leonardo Boff é colunista do JB on-line e escreveu Opção Terra: a solução da Terra não cai do céu, Record 2010.
Metas da educação crítica


Uma educação crítica e libertadora deve ter em vista construir uma civilização solidária, livre de opressão e desigualdade social.
Vivemos todos sob a hegemonia do pensamento único neoliberal e da economia capitalista centrada na apropriação privada da riqueza. O neoliberalismo, como vírus que se dissemina quase imperceptivelmente, se introduz nos métodos pedagógicos e nas teorias científicas; enfim, em todos os ramos do conhecimento humano. Assim, instaura progressivamente ideias e atitudes que fundamentam a ética (ou a falta de ética) das relações entre seres humanos e dos seres humanos com a natureza.
Na lógica neoliberal, a inclusão do indivíduo como ser social é medida por sua inserção no mercado como produtor e consumidor. As relações humanas são determinadas pela posse de mercadorias revestidas de valor. É o fetiche denunciado por Marx.
Essa inversão relacional - segundo a qual a mercadoria possui mais valor que a pessoa humana, e a pessoa humana é valorizada na medida em que ostenta mercadorias de valor – contamina todo o organismo social, inclusive a educação e a religião, conforme denunciou o papa Francisco a 22 de dezembro de 2014, ao apontar as "15 enfermidades” que corroem a Cúria Romana.
Disso decorre uma ética perversa, que sublinha como valores a competitividade, o poder de consumo, os símbolos de riqueza e poder, a suposta mão invisível do mercado.
Tal perversão ética debilita os organismos de fortalecimento da sociedade civil, como movimentos sociais, sindicatos, associações de bairro, ONGs, partidos políticos etc. O padrão a ser adotado já não é o da alteridade e da solidariedade, mas o do consumismo narcísico e da competitividade.
Como superar, hoje, esse padrão de vida capitalista que, se não vigora em nosso status social, muitas vezes predomina em nossa mentalidade? Nisso a educação exerce papel preponderante para que as novas gerações não se sintam obrigadas a adaptar-se ao novo "determinismo histórico”: a hegemonia do mercado.
Hoje, uma das poderosas armas de superação do neoliberalismo é a educação crítica e cooperativa, capaz de criar novos parâmetros de conhecimento e suscitar novas práxis emancipatórias. Sobretudo quando ela se vincula a movimentos sociais de defesa dos direitos humanos e de aprimoramento da democracia.
É através da educação que se moldam as subjetividades que imprimem significado aos fenômenos sociais. Acontece, com frequência, de se viver um antagonismo entre o microssocial (pautado pela subjetividade) e o macrossocial (pautado pelas estruturas). Professamos uma ética que não praticamos e uma democracia que não admitimos ao ocupar função de poder.
Bons exemplos de coerência entre o microssocial e o macrossocial são Gandhi, Luther King e Chico Mendes: a partir de seus ideais específicos – luta contra o imperialismo britânico, a discriminação racial e a degradação ambiental – lograram modificar estruturas e implantar novos parâmetros éticos nas relações pessoais e sociais.

Frei Betto é escritor, autor de "Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais

http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=84251
A tarefa monumental de Sociologia  e Filosofia - Há sete anos, disciplinas se tornaram disciplinas obrigatórias no Ensino Médio após intervalo de quase quatro décadas

Os mais de 10 milhões de brasileiros que se formaram no Ensino Médio nos últimos sete anos levaram da escola algo que não foi oferecido a quem se formou nas quatro décadas anteriores: aulas de Filosofia e Sociologia. Com a missão generalizada de “ensinar a pensar”, as disciplinas ainda esbarram em dificuldades para efetiva implantação em sala de aula, mas especialistas, professores e alunos já visualizam frutos.
“Ganha-se sempre, mesmo que ainda haja necessidade de ajustar conteúdos e profissionais a formar”, diz a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo, especializada na história da disciplina, Olgaria Chain Féres Matos. “Não há dúvida de que houve avanço”, afirma, na mesma linha, Juvenal Savian Filho, professor da Universidade Federal de São Paulo “Os problemas da nossa sociedade são grandes, mas certamente começamos a construir algo”, diz André Ricardo de Souza, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.
A ênfase dos três aos resultados positivos se dá depois de uma longa lista de problemas que as disciplinas ainda têm a enfrentar. Só o fato de ser apresentada aos alunos no Ensino Médio, etapa que reúne os piores indicadores da educação brasileira em termos de evasão e aprendizado, já impõe um obstáculo a todos os conteúdos para adolescentes, mas Filosofia e Sociologia têm um histórico difícil a vencer.
As duas áreas foram banidas do currículo brasileiro em 1971, pela reforma educacional feita pelo regime militar. Antes disso, filósofos e sociólogos já estavam entre os primeiros perseguidos desde o golpe de 1964. Aulas que ensinassem os alunos a fazer as próprias análises por diferentes vertentes e questionar políticas eram consideradas afrontas e punidas. Como substituta, foi criada a Educação Moral e Cívica (EMC) com conteúdos de doutrina patriótica.
Até aí, muitas outras foram as áreas prejudicadas pela ditadura, mas Sociologia e Filosofia permaneceram afastadas das escolas por mais 20 anos depois da queda do regime. A redemocratização começou oficialmente em 1985. Em 1988 foi promulgada a atual Constituição, em 1993 a EMC saiu do currículo e, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases delineou novos direitos dos estudantes, mas Sociologia e Filosofia não apareciam como disciplinas.
Só a partir dos anos 2000, redes particulares e estaduais começaram a inserir os conteúdos na grade e, em 2008, foi instituída a obrigatoriedade por lei. “O intervalo de quase 40 anos fez com que a escola perdesse todas as referências de como os assuntos eram tratados. Teve-se que começar de novo, sem materiais atuais”, comenta Souza.
A primeira questão que se impôs foi o currículo. O Ministério da Educação não define exatamente o que deve ser ensinado, apenas orienta que o professor percorra temas que envolvem vida, cidadania e arte com base nas principais linhas de cada uma das disciplinas. Savian Filho acha que este é o caminho para escapar do “achismo”.
“Boa parte das reflexões têm elementos da atualidade ou dão base para se refletir sobre o momento atual, mas se não forem apresentadas as questões históricas e como cada filósofo em seu tempo tratou dos temas, corre-se o risco do debate livre. Isso não é Filosofia”, explica. Ele frisa que a análise histórica mostra que não existe o bem e o mal ou o certo e o errado, a não ser diante de contextos, análises e paixões que são do indivíduo que faz o julgamento.
Olgaria define sua área como “uma interrogação sem conclusão” e a missão da Filosofia como “abertura de espírito para entender que a verdade nunca está de um lado só”. Ela defende que todos os estudantes têm direito a conhecer o patrimônio do pensamento acumulado pelos principais pensadores que se conhece e saber também como cada corrente questionou as anteriores. “Aristóteles e Platão terão sempre que ser estudados, mas foram questionados por Descartes (1595-1650), que foi questionado por Kant (1724-1804). As questões são muito mais importantes.”
Em Sociologia, Souza defende o mesmo. As bases teóricas dos pais da disciplina, Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim e textos contemporâneos que sirvam de “instrumental teórico” para tratar da vida em sociedade e temas como religião, trabalho, cidadania, lutas de classes e política.
A tarefa é considerada gigantesca por precisar fazer contrapeso à mídia e ao reducionismo das redes sociais que parecem levar cada vez mais a uma divisão da população diante de qualquer assunto. “Ao mesmo tempo que isso comprova a necessidade de ensinar a pensar e fazer análises embasadas, não dá para ignorar o tamanho do desafio”, comenta o sociólogo.
Para Olgaria, pesam também os problemas sociais que impactam na Educação e aumentam a falta de base cognitiva e informação entre os alunos. “É muito difícil pedir a um adolescente que saia do senso comum quando ele, muitas vezes, ainda tem dificuldade básica de interpretação e lógica. Mas ainda assim é preciso atuar e dar alguma base teórica que os alcance”, diz.
Outro problema de ordem prática é a falta de professores com formação específica. Quando Filosofia e Sociologia voltaram para o currículo do Ensino Médio, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) informou que, mesmo somadas, as disciplinas só tinham metade dos cem mil profissionais da área necessários. Cerca de 70% dos professores que passaram a dar aulas tinham formação em outras disciplinas como História e Letras.
No ano passado, um levantamento do Tribunal de Contas da União feito em todos os estados, exceto São Paulo e Roraima que não permitiram a investigação, revelou que o porcentual havia se invertido. Atualmente 70% dos professores do Filosofia e Sociologia são formados em uma das duas áreas correlatas. Os 30% restantes, no entanto, ainda são uma parcela bastante grande.

O professor Renato Fialho Júnior, formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro quando as disciplinas ainda estavam longe do currículo, em 1991, afirma que a insegurança e os salários desviam o interesse de mais profissionais. Ele trabalhou por mais de uma década como com sociólogo pesquisador em um instituto de pesquisas e começou a dar aulas há 10 anos. Atualmente trabalha em três escolas de Nova Iguaçu, na baixada fluminense, com 18 turmas diferentes, a maioria de Sociologia, mas quatro delas de Filosofia.

“Por mim, dava aula apenas de Sociologia e em menos escolas”, comenta. Ele reclama que, desde a obrigatoriedade, a rede estadual do Rio de Janeiro previa duas aulas de cada uma das duas disciplinas nas três séries do Ensino Médio, mas, em 2012, houve redução no primeiro e segundo ano, que passaram a ter uma aula cada. “Antes eu podia completar minha carga com duas escolas. Três se optasse apenas por Sociologia. Agora, preciso de três com as duas disciplinas para chegar a 40 horas e, ainda assim, o salário de professor não é grande atrativo”, comenta.

Para ele, as discussões sobre reforma do Ensino Médio e agrupamento de disciplinas são um risco para as áreas específicas depois de tão pouco tempo de retorno. “Na campanha presidencial, quando os candidatos falaram no assunto, as primeiras matérias que visualizamos como sendo fundidas foram as duas”, afirma. Ele também reclama da reação dos governos a movimentos grevistas ou mesmo protestos de alunos capitaneados por profissionais da área. “Querem uma sociologia que não questione, seria estelionato.”

Mais uma vez, Olgaria vê na falta de compromisso com as áreas um exemplo da falta de olhar crítico sobre o sistema escolar. “Temos um excesso de conteúdos de Ciências Exatas que nunca serão usadas pela maioria das pessoas e raramente alguém questiona, mas a Filosofia lida com as questões da vida. Uma área que certamente tem feito falta à nossa sociedade”, reclama. “Engana-se quem pensa que esses temas são familiares, eles exigem reflexão profunda e embasada, mas depois serão úteis em todos os dilemas.”
O professor de Filosofia Antonio Kubitschek, de Taguatinga, Distrito Federal, pode considerar que obteve sucesso no despertar da reflexão. Ele ficou famoso por colocar em uma prova um enunciado que chamava a funkeira Valeska Popozuda de “pensadora contemporânea” para provar aos alunos como a mídia julgava sem análise. Meses antes, ele havia previsto que os jornalistas convidados para uma mostra cultural no Centro de Ensino Médio 3, em que trabalha, não viriam, mas o procurariam para falar da questão de prova.
Os estudantes viram o episódio ganhar repercussão nacional e pessoas sem qualquer informação sobre o caso cometerem julgamentos precipitados e cheios de erros. “Eu me divertia com os comentários nas matérias, mas eles começaram a ser tão ofensivos que acabei por responder”, conta Gabriel Guilherme Barros Magalhães, 19 anos, que foi um dos alunos a receber a responder a avaliação polêmica.
Ele escreveu um comentário de seis parágrafos em resposta a centenas em um site de notícias. “A matéria dada pelo professor Antônio tratava a respeito da Teoria do Desenvolvimento Moral. Eu não vou explicar isso aqui, pois acham-se no direito de julgarem um professor de Filosofia, creio eu que devem ter conhecimento a respeito do assunto. No entanto, um dos tópicos foi o dilema de Heinz, proposto por Kohlberg”, dizia parte do texto que seguia explicando o dilema (roubar ou não um remédio que salvaria uma vida e como cada resposta denota um nível de moralidade).
Ao final, concluía: “O que acontece nesta situação é o mesmo: ‘Não devia ter colocado a questão na prova pois é um professor e isso é errado’ é o nível convencional, terceiro estágio, pertencimento ao grupo. Quando suas respostas a isso, como adultos, deveriam estar no nível pós-convencional, destacando o conflito entre a ética profissional e o direito que cada pessoa tem de exercer a própria vida, ou no sexto estágio do nível pós-convencional. Mas, infelizmente, como diz Kohlberg, nem todos os adultos atingem este nível, devido à educação e vida que recebem, em condições diferentes”.
Gabriel afirma que a resposta poderia ter sido dada por qualquer colega e que as aulas costumavam motivar a sala e fazê-los pensar além do obvio. Este ano, ele presta vestibular para Letras, mas acredita que as disciplinas que mais o moldaram foram Sociologia e Filosofia. “Me considero uma pessoa melhor pelo que aprendi. Mais ponderada e com uma visão mais ampla e abertura para os argumentos. Não moldou minha escolha profissional, mas é parte do ser humano que sou.”


Por Cinthia Rodrigues
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Publicado na edição 95, de 0 de 2015 

A desumanização do humano

A desumanização do humano, por Nara Rúbia Ribeiro
Acordo sempre bem cedo e, por força da necessidade de me ver integrada ao mundo em que vivo, ligo a tv e abro o notebook, enquanto a água ferve para o café da manhã:
“Milhares de crianças na Nigéria foram mortas, raptadas ou expostas a violência inimaginável (nota da Unicef).” Mudo de site: “Mulher tem os olhos perfurados pelo marido durante discussão do casal”. Outro site notícia: “Adolescente é apedrejado por populares após ser pego ao tentar furtar um  aparelho celular”. Abro o Facebook: “Carta aberta de Mia Couto ao Presidente da África do Sul sobre o genocídio de moçambicanos naquele país”. Na tv: “Naufrágio no mediterrâneo pode ter causado centenas de mortes de imigrantes”.
Ainda sem conseguir mensurar a quantidade de dor a que fui exposta logo no início do dia, resolvo, já com olhos embaçados e voz embargada, comprar o meu pão. A caminho da padaria, deparo-me com uma senhora que dorme na calçada abraçada a uma criança, ambas cobertas por um imundo cobertor. Como se não bastasse a cena em si, um senhor bem vestido e seguramente muito apressado quase nelas tropeça e reverbera: “Desgraça! Trabalhar não quer, não… Fica aí entulhando a rua”.
Perco o chão e me sinto petrificada ao observar, na gravidade de tudo o que vi nos noticiários e agora bem diante de mim, naquela cena, o paradoxo de viver, na era áurea dos direitos, a flagrante desumanização do humano.
Tratados e Acordos Internacionais estabelecem que dados direitos são preciosidades inalienáveis de cada um dos humanos. O Direito Constitucional de cada Estado traz ao seu ordenamento interno garantias a esses direitos que são diretamente ligados aos ditos “direitos naturais”, compreendendo o direito à vida, à integridade física, ao respeito à dignidade de cada ser humano.
Mas a sociedade, que bem sabe evocar as leis quando é colocado em xeque algum de seus direitos patrimoniais, vale-se de um mecanismo muito sutil para mentalmente subverter os valores que ela própria instituiu. Ela hierarquiza os seres humanos valendo-se de indicadores diversos, mas preponderantemente econômicos, de modo que quanto mais alto alguém esteja na dita “pirâmide social”, mais humano ele seja e o quanto mais baixo estiver, menos humano ele é. Ocorre, então, a desumanização do humano.
E, se não é humano, é considerado indigno de ser protegido pelos direitos inerentes à nossa espécie, momento em que tantos enxergam como legítimos atos de absoluta barbárie.
Esse método já é antigo. Europeus, em pleno “século das luzes”, equipararam indígenas americanos a animais, dizimando-os. Equipararam também a animais ou a “coisas” os africanos, escravizando-os.
Na tentativa de legitimar toda a sorte de maus tratos à mulher, religiosos, na Idade Média, travaram severas discussões: a mulher teria ou não teria uma alma?
Para algumas religiões, aqueles que professam a sua fé são filhos, os demais, meras criaturas de Deus. Ora, se não são filhos de Deus, se não possuem filiação e proteção divinas, caso recusem a fé que tanto estimam são hostilizados e havidos como inferiores. Por vezes a inferioridade é tamanha que as suas existências ofendem os “santos corações religiosos”, que reagem com torturas e homicídios. Quem não leu sobre as cruzadas, as inquisições e tantas outras de mortes por motivação religiosa no curso da História e na atualidade?
É na desumanização do homem que se apoia o genocídio, tanto no passado quanto nos dias de hoje. Na visão fanática que deu ao nazismo contornos similares ao fanatismo religioso, os judeus nada mais eram que porcos a serem sangrados para a higienização do planeta; e assim o fizeram com esmerado sadismo, legando à humanidade a vergonha do holocausto.
É fácil perceber as incongruências históricas no tocante ao desrespeito aos Direitos Humanos e, não raro, envergonhamo-nos de nossos antepassados. Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu próprio tempo.
Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu próprio tempo.
Hoje, a passividade com que vemos a segregação dos negros, a discriminação dos pobres, o desprezo aos imigrantes, a demonização do infrator, a subjugação da mulher, a estigmatização de homossexuais, o desrespeito às comunidades indígenas e a perseguição de religiões e cultos diversos (no Brasil, especialmente às religiões de origem africana)  condena-nos a todos.
Aquele que se conforma com a injustiça é tão injusto quanto aquele que a pratica. Somos coautores da miséria moral de um tempo onde o sangue francês vale lágrimas e comoção de todo o mundo (e vale mesmo), enquanto o sangue de centenas de africanos se derrama anônimo, embora o derramamento se dê pela mesma motivação religiosa e sob o mesmo discurso de desumanização.
Ontem, ao ler os comentários acerca da xenofobia e do genocídio que vitimam moçambicanos na África do Sul, uma adolescente moçambicana comentou: “o nosso único pecado é sermos miseráveis”. Sim, ela entendeu o mecanismo: desumanizamos o pobre culpando-o por sua pobreza. Na visão doentia de muitos, ele é um estorvo. Um nada. “É um entulho na calçada do mundo”, diria o moço apressado que  quase tropeçou na senhora e na criança que dormiam na rua.
Sim, é nesses pobres a quem desumanizamos que tropeça a hipocrisia de uma pseudocivilização de Direitos. É neles que tropeça a religiosidade ociosa e o fanatismo sádico. Neles tropeça a nossa política não inclusiva e o nosso capitalismo: sempre cego a quem não lhe  mostrar os cifrões.
É junto a esses pobres mendigos a quem roubamos o direito de ser gente que se entulham também o humano que somos e a consciência que renegamos.
Fotografia de Alessandro  BergaminiFotografia de Alessandro Bergamini
Nara Rúbia Ribeiro: colunista CONTI outra
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